Natal
Nos anos 60/70 trabalhava eu no chiado, onde era um jovem paquete de escritório nesta linda cidade de Lisboa.
Recordo hoje como era diferente o ambiente natalício daquela altura.
Assim que começavam a aparecer no chiado uns escadotes enormes em madeira da empresa de electricidade de Barcelos que habitualmente se encarregava das iluminações de Natal, ou o auto-escadas dos bombeiros, o ambiente do chiado mudava completamente, como por magia.
Os escadotes ou o auto-escadas ficavam quase sempre metade no passeio metade na faixa de rodagem, e nessa altura todas as ruas tinham dois sentidos de trânsito, apesar de geralmente taxistas e policias fossem como o cão e gato, nessa época tornavam-se compreensivos e, quase quase amigos.
No fundo, toda a gente ficava mais compreensiva, mais simpática, mais tolerante, mais bem disposta.
As lojas, passavam a trazer os sacos das compras aos carros que paravam no meio da rua e nem os taxistas buzinavam.
Cumprimentavam-se os vizinhos, dava-se os bons dias a toda a gente, especialmente às pessoas que durante o ano se cruzavam connosco, mas a quem só na altura do natal se falava por andarem então de cara levantada e sorridentes.
O Polícia sinaleiro da Rua do Ouro, da Rua de S. Nicolau, da Rua do Carmo, da Rua Ivens, o da Rua Anchieta (que só por alturas especiais é que aparecia), o da Rua Serpa Pinto, o da Rua Nova da Trindade, o do Largo de Camões, passavam a fazer-nos uns gestos de cumprimento, um piscar d'olho e às vezes até paravam o trânsito para passarmos.
O polícia de trânsito com braçadeira vermelha no braço com um "T", que quando via algum moço a caminhar levemente pela rua fora, com uma chave na mão em direcção a um carro estacionado, perseguia de soslaio para agarrar com a boca na botija a mudar a hora ao disco de estacionamento (que era um disco de cartão que se colocava no tablier do carro na zona azul e que tinha do lado esquerdo a hora de chegada e do lado direito a hora até que era permitido o estacionamento), na altura de natal fazia o sentido inverso ou voltava as costas para não ver.
Até mesmo um carro parado, desde que não impedisse o trânsito e tivesse alguém dentro podia estar( e na altura ainda não havia sido inventado o estacionamento em cima do passeio).
Era por essa altura, que o polícia da rua arranjava uma quantidade de discos novos grátis para as faltas, porque quase sempre aparecia alguém que ainda não tinha (geralmente casais de fora de Lisboa que vinham às compras) ou alguém que o tinha perdido.
À porta de qualquer restaurante, nessa altura era fácil encontrar um disco novo e qualquer porteiro ou "groom" de restaurante nessa altura cedia um com a maior das simpatias.
Restaurantes ou outras casas como, o Ibéria, o Lorde, a Tágide, o Belcanto, o Avis, o Turf, o Tauromáquico, o Grémio, a Marques, a Benard, a Garret, a Ferrari, a Parisiense, a Camões, a Brasileira, a casa das Bicicletas, a Havaneza, a Diário de Noticias, a tabacaria da rua Capelo, a da entrada lateral da igreja da Encarnação, etc.
Bom, também era verdade que os seus superiores, que se dirigiam para o Governo Civil (que apenas reconhecíamos porque os polícias batiam a pala, pelo seu corpolento aspecto, e casacos curtinhos) e que fora essa época tinham sempre uma atitude menos simpática para com eles, nessa altura de Natal também se tornavam menos rigorosos.
A verdade, e o segredo disto tudo, é que tudo assim acontecia porque por regra todas as firmas davam a toda uma série de gente, uma compensação monetária pelo natal.
Costumava ir-se lá receber as boas festas.
Nessa altura, por quase todas as empresas essa gente iam deixando cartões de boas festas que dava origem a uma lista que a partir de 6 de janeiro até ao fim do mês passam para levantar.
Como era o caso dos ditos sinaleiros, do guarda de giro, do guarda de trânsito, dos limpa-chaminés (do Poço do Borratem), dos marçanos do Jerónimo Martins, da Martins & Costa, da Londrina, da Antiga Casa José Alexandre, da Casa Pereira, do talho da rua da Misericordia, da drogaria do largo Camões e da rua do Alecrim, do arrumador de carros do largo da Biblioteca Pública, do largo de S. Carlos, do largo do Picadeiro, do largo Barão Quintela, da praça do Município, do largo do Corpo Santo, do largo da Estação do Rossio, do carregador da Praça da Ribeira e da Ribeira velha, do taxista, dos moços de esquina, dos almeidas, dos homens do carro do lixo, do carteiro, do guarda nocturno, dos Bombeiros, do vendedor dos jornais, do pitrolino, do padeiro, do leitero, dos vendedores das rifas dos Inválidos do comércio (que estacionavam a carrinha junto à casa da sorte e todo o dia tocava umas músicas e propagandeava o sorteiro do carro que transportava), dos cauteleiros, do ceguinho do câo junto da Igreja da Encarnação, do ceguinho que tocava acordeôn, etc.
Claro que a partir de janeiro, lentamente voltava tudo ao normal.
Nada mais restava que esperar novamente pelos electricistas de Barcelos com os seus enormes escadotes de madeira.
Mas era um ambiente que recordo com carinho, não saudade, não nostalgia apenas carinho.